Dono de Mercedes vive impune após batida matar 2 e deixar bebê paraplégico

06 de Maio 2024 - 14h19
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Os amigos André Gonçalves e Wesley Bispo voltavam de carro com suas famílias de uma viagem ao litoral, em 2018, quando uma Mercedes em alta velocidade atingiu a traseira da Ecosport, mudando a vida dessas famílias para sempre. A mulher de Gonçalves morreu na hora, deixando três filhos, e ele ficou paraplégico. Bispo perdeu a esposa e viu seu filho de um ano e meio também ficar paraplégico.

Apesar de condenações na Justiça, o empresário André Veloso Micheletti, que dirigia a Mercedes, continua impune seis anos depois da tragédia.

O que aconteceu
A Ecoesport voltava para São Paulo com oito pessoas após dois dias na Baixada Santista: Gonçalves, então com 39 anos, a esposa, com 40, e os filhos de 1, 2 e 5 anos. Bispo tinha 20 anos, a mulher, 21, e seu filho tinha 1 ano e sete meses.

Por volta das 21h, o desastre na rodovia Imigrantes. André conta no depoimento que subia a serra pela pista da esquerda a 120 km por hora enquanto os outros ocupantes tiravam um cochilo. De repente, "só sentiu o impacto" —seu veículo rodopiou na pista "mais de 20 vezes" até chegar ao gramado.

Quando o carro parou, só ele e o amigo estavam conscientes. Bispo olhou para o banco de trás e viu a esposa de Gonçalves já morta e sua mulher desmaiada. Ela chegou a acordar, mas voltou a perder os sentidos. Bispo, então, retirou seu filho do colo da esposa e entregou para um pessoa que chegou para ajudar.

Quando tentou sair do carro, o motorista não conseguiu. Gonçalves achou que suas pernas haviam sido arrancadas, enquanto o puxavam para fora do veículo, que começava a pegar fogo.

O laudo pericial dos veículos e uma simulação "conferem verossimilhança à versão" das vítimas. "Uma simulação no local do acidente com veículo idêntico ao Mercedes estimou que a velocidade do veículo estava entre 134 km/h até 298 km/h", diz o processo.

A suspeita é que o empresário André Veloso Micheletti disputava um racha contra um policial que dirigia um Camaro preto. A hipótese, apontada por investigadores na época, foi a mesma relatada por uma testemunha do acidente.

Para a Justiça, o racha ainda não foi comprovado. "Não se pode afirmar, com razoável grau de certeza, que o réu disputava competição de corrida não autorizada, na via pública, popularmente conhecida como 'racha'", escreveu o juiz Gustavo Kaedei.

Micheletti culpa as vítimas
No processo, o motorista nega que tenha participado de um racha. Diz ainda que ajudou a salvar as vítimas e culpa Gonçalves pelo acidente.

"A Ecosport, sem qualquer sinalização, invadiu a faixa da esquerda, de modo que a dianteira direita de seu veículo chocou-se com a traseira esquerda da Ecosport", diz
André Micheletti.

A perícia, porém, indica o contrário.

"As provas são robustas e historiam de modo inconteste o excesso de velocidade, como a falta de mantença de distância frontal do veículo que vinha em frente, tudo devidamente comprovado por laudo pericial", afirma o Juiz Fernando Domingues Ladeira, em sentença.

Motorista não indenizou vítimas
Micheletti, na época com 50 anos, chegou a ser preso. Ele foi detido no dia do acidente e solto após 44 dias porque a Justiça considerou que ele não representava perigo às investigações.

Atualmente, o processo criminal está parado esperando a realização de um laudo sobre o Camaro.

Gonçalves e Bispo processaram Micheletti em ações diferentes na esfera cível. Eles pediram indenização por danos morais, reembolso das despesas médicas, dos funerais das esposas e pensão vitalícia, entre outros. "Atualmente os valores giram em torno de R$ 1,5 milhão para Gonçalves e R$ 500 mil para Bispo", contando correção por juros, diz Cezar Augusto Oliveira, advogado dos dois.

Micheletti foi condenado em primeira e segunda instâncias, mas ainda não pagou. A sentença favorável a Bispo saiu em novembro de 2021, enquanto a de Gonçalves foi em junho do ano seguinte. A defesa recorreu da decisão ao STJ (Superior Tribunal de Justiça). "Em Brasília, ele poderia mudar os valores da indenização, mas o mérito já foi sacramentado nas instâncias inferiores", diz Oliveira.

Para o advogado das famílias, Micheletti esconde os bens para não indenizar as vítimas. "A Justiça bloqueou dois apartamentos, uma Mercedes, duas Range Rover e um Porsche", diz o defensor. "O CPF da esposa dele e o CNPJ de uma das empresas da mulher dele também foram bloqueados."

"As Range Rover e a Mercedes são de uso particular dele, mas estão em nome de terceiros, como o sogro, um dentista em Taubaté", diz Oliveira. A Porsche, em nome dele, "foi escondida". "A última vez que foi vista estava em Mogi Guaçu", a cerca de 160 km da capital.

"Miqueletti entrou com recurso pedindo desbloqueio dos veículos. Mas se não são dele, por que ele tem interesse em desbloquear?", Cezar Augusto Oliveira, advogado

Antes de perder os movimentos da cintura para baixo, Gonçalves trabalhava como feirante e guincheiro de carro. "Foi difícil aceitar a paralisia e perder a mulher com quem vivi por 20 anos", recorda. "No primeiro ano, achei que não conseguiria superar. Eu só pensava em morrer. Antes, eu acordava de madrugada para trabalhar e, de repente, estava na cama recebendo comida no prato."

De seus três filhos que estavam no carro, só o do meio, hoje com 9 anos, se feriu (quebrou a bacia). "A família ajuda bastante. Os filhos de 7 e 9 anos moram com a avó, e a menina de 11 anos mora comigo. Agora quero me estruturar pra trazer os outros dois", afirma.

Ele confessa que pensou em se vingar do empresário ao vê-lo solto. "Eu resisti, mas é por isso que tem gente que faz justiça com as próprias mãos", afirma.

Bispo estava cochilando quando sofreu o impacto. "Quando abri o olho, a minha vida toda tinha mudado. Minha mulher morreu no dia seguinte, ao meu lado no hospital. Enterrei ela num dia e no outro fui ver meu filho", diz. "Quando cheguei, me fizeram assinar um monte de papel para autorizar uma cirurgia. Quando ela acabou, o médico disse que meu filho não ia mais andar.'

Enquanto desenvolvia depressão e ansiedade, Bispo cuidava das burocracias. "Eu ia para delegacia, Fórum, audiências, levava meu filho para a fisioterapia, no transporte público. Minha vida mudou de forma tão bruta, que não vivi o luto", diz ele, que hoje sustenta o filho como motorista de aplicativo.

O filho completa oito anos no final do mês. "Graças a Deus, ele é uma criança feliz. Ele vê as fotos da mãe, a gente fala sobre ela, mas ele desconversa. Acho que no subconsciente isso ainda é um trauma", afirma.

Com informações de UOL