Entre a omissão e a mentira

12 de Março 2020 - 11h22
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Na internet procuro, sempre que possível, escrever textos curtos, lauda e meia no máximo.

Eventualmente, quebro a regra e o farei agora, quando a polêmica sobre o caso do abraço do médico Drauzio Varela na travesti Suzy começa a esfriar.

Manifestei-me sobre o caso por duas vezes nas redes sociais e em ambas fui incisivamente contra à atuação do médico que, ressaltemos, não estava ali efetivamente como médico.

Li e ouvi familiares, amigos, colegas e desconhecidos discutindo fervorosamente o tema e, nos ambientes que frequento, a maioria estava favorável à matéria do Fantástico, da Rede Globo, rede de televisão que mais amamos odiar.

Houve quem trouxesse Jesus Cristo em socorro à atitude do médico.

A visita de Drauzio à qualquer prisão é digna de elogio, demonstrar respeito pelos presos é digno de nota, mas é preciso, antes de qualquer coisa, que todos saibamos e nos conscientizemos que os presos ali estão para cumprir pena porque cometeram crimes.

A travesti Suzy, abraçada por Drauzio Varela, foi condenada por estuprar e matar uma criança, é acusada de abusar de outras duas e cometeu outros delitos de menor monta.

Segundo ela, não recebe visitas há sete anos. 

Qualquer pessoa que cometa crimes tem de ser punido. Se o crime é hediondo, a pena é agravada.

É o caso de Suzy.

A matéria do Fantástico foi no mínimo mal produzida. Jornalistas experientes disseram isso.

Houve manipulação e isso fica claro no fato de que a travesti foi mostrada não porque a Globo acredita que ela mereça amor.

Ela estava na matéria como um instrumento de manipulação midiática a serviço de uma agenda ideológica pretensamente progressista.

O médico se eximiu de qualquer responsabilidade porque, segundo ele, estava ali apenas como médico.

Ora, ele estava ancorando uma matéria jornalística e, portanto, a ele cabia informar-se sobre a detenta ou então a ela perguntar sobre os crimes que cometera, se se arrependera, se se desculparia com a família da criança assassinada vil e barbaramente, etc.

Mas não, o espetáculo não era para fazer jornalismo de verdade, mas para mostrar uma criminosa em situação de fragilidade e, assim, criar um clima de comoção.

A família da criança estuprada e assassinada sequer foi citada, que dirá protegida.

Um escárnio sem tamanho.

Houve quem dissesse que ali estava a verdadeira compaixão, porque ela, a compaixão, só deve ser louvada e louvável se dirigida a quem não a merece.

Aí está um dos problemas maiores da atitude de Drauzio Varela e da Rede Globo, a saber, retratar uma criminosa sexual e assassina como se vítima fosse.

Se bem me lembro, compaixão é sofrer com, logo quem deve merecer compaixão são os familiares das vítimas de criminosos – nunca os criminosos.

Ao criminoso cabe cumprir a pena estabelecida pela sociedade e ao Estado cabe tratá-lo com dignidade – e só.

Como adiantei acima, tem um muita gente vendendo um cristianismo fajuto por aí para justificar suas taras e perversões escondidas nos recônditos da alma.

Nas aulas de catecismo a que compareci para fazer primeira eucaristia que nunca fiz, aprendi que, antes de pedir compaixão, um pecador precisa reconhecer os próprios erros e, portanto, merecedor da pena imposta e que viver de dar publicidade aos próprios atos de compaixão é apenas uma forma de esvaziá-los de qualquer mérito que possa ter.

O perdão de Deus só está posto mediante o arrependimento genuíno, indicou-me o padre José Dantas Cortez, em Florânia, ali pelo início da década de 1990, entre um gole e outro de uísque – ele bebendo doze anos e eu o oito anos Old Eight.

Os clássicos da patrística e S. Tomás de Aquino me ensinaram que a justiça é um dos mais sólidos pilares do amor de Deus.

Basta ler as escrituras com cuidado para constatar que Jesus, um personagem do Novo Testamento, salvou o ladrão na cruz e não da cruz – morrendo, ele mesmo, inocente entre dois apenados.

Não foram poucos os que perceberam o descompasso entre a dramatização construída pelo Fantástico e a realidade por trás da criminosa que Drauzio Varella abraçou.

Tratar um criminoso com a dignidade que merece um ser humano, por pior que seja, não é motivo de censura. Fazer de um assassino um injustiçado é vergonhoso.

A matéria da Rede Globo, no Fantástico, durou mais de dez minutos, uma eternidade em televisão. Durante a matéria e, principalmente, na esteira da repercussão que a ela se seguiu, todos os que rejeitaram o teor do conteúdo ali exposto foram apontados como desumanos e insensíveis.

Somente quando os fatos foram vindo à tona e as evidências de manipulação estão escancarados, foi que Drauzio Varela – que inicialmente soltou uma nota amorfa e covarde – e a Rede Globo se manifestaram.

A credibilidade da emissora dos Marinho, que vem caindo com o passar dos anos, foi manchada pela desfaçatez e pela falta de sensibilidade da produção do programa dominical.

A barrigada da Globo está em sintonia com estes tempos de informação em tempo real, quando a grande imprensa, na luta pela concorrência, tem confundido difundir informação com patrocinar lacração.

Senti falta de militantes dos direitos humanos e de feministas criticando a matéria de programa “da odiosa Rede Globo” alisando a cabeça de criminosa sexual. Provavelmente a crítica nunca venha, afinal a criminosa faz parte da minoria a ser protegida, mesmo quando errada.

A Rede Globo, após a repercussão negativa da matéria, resolveu se pronunciar, demonstrando tardiamente alguma compaixão com a família da criança estuprada e assassinada.

E é a mesma Rede Globo que, ao final do ano, pedirá dinheiro no Criança Esperança.