Farinha do mesmo moínho

19 de Abril 2022 - 05h35
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Um fato muito comum da vida pública brasileira é que, de tempos em tempos, há certo grau de exacerbação e proliferação de movimentos políticos que se constituem sob a bandeira do moralismo, por vezes fruto de uma sadia manifestação de inconformismo que terminam por descambar para a seara e se constituem na forma mais importante de oposição ao sistema e trazem traços expostos ou latentes de autoritarismo. A antiga União Democrática Nacional (UDN), agremiação partidária nascida sobre as cinzas da ditadura estadonovista, o Partido dos Trabalhadores e o lulismo e, agora, o bolsonarismo são alguns dos exemplos mais sólidos de nossa história, mas há outros de menor envergadura, visto que mais regionalizados.

O moralismo, em política, reforça tendências autoritárias, porque qualquer moralista é um ser autoritário que não suporta ver o outro fazendo coisas reprováveis que ele também faria.

Nicolau Maquiavel é o primeiro pensador a mostrar a distinção entre moral e política, descrevendo a realpolitik, na qual se enquadra toda a atuação dos quadros políticos em qualquer época. N’O Príncipe, o filósofo florentino separa esfera política e esfera moral, invariavelmente gerando má compreensão para muitos que não o leem a sério, pois para o leitor mediano é difícil compreender como o melhor governante não é necessariamente um homem moralmente bom.

O que Maquiavel diz claramente é que a moral pertence a um campo distinto da política. Em outras palavras: o Estado não pode e não deve interferir em nossa vida privada e em nossos valores morais, pois sempre que resolveu se intrometer na vida privada dos indivíduos, para difundir valores morais e exigir adequação a eles, pavimentou o caminho para as mais variadas formas de autoritarismo.

Em tese, todo moralismo é imoral, entretanto é muito difícil argumentar que qualquer missão moralista para consertar o mundo é incompatível com os princípios democráticos. Os exemplos que a história nos oferece mostrando que o moralismo exacerbado contamina e corrompe a lógica política são múltiplos e variados.

Nos dias atuais, os neopopulismos lulista e bolsonarista são projetos políticos autoritários baseados no maquiavelismo. O lulista com tinturas gramscistas, enquanto o bolsonarista bebe num nacionalismo militarizado, esguiano.

O velho Leonel Brizola disse, durante a campanha presidencial de 1989, que os antigos serviçais do regime de 1964, naquele momento participando das eleições e defendendo a ordem democrática, eram todos filhotes da ditadura – “Não são farinha do mesmo saco, mas o são do mesmo moinho.”

PT, MDB, PSDB...Centrão e outras siglas e grupos e facções espalhadas da direita à esquerda, abrigando aliados e adversários de Lula e de Bolsonaro e de outros mais não são farinha do mesmo saco, mas o são do mesmo moínho.

O PMDB (hoje MDB) foi aliado do PSDB, entre 1995-2002, e garantiu, com o PFL (depois DEM e hoje União Brasil), estabilidade ao governo tucano. Depois, em 2003, pulou para o colo do PT, permitindo a estabilidade de que gozaram os governos petistas de Lula (dois mandatos) e de Dilma (primeiro mandato).

Era o mesmo PMDB de Sarney, Temer, Cunha, Jáder, Jucá, etc. O PT, que fazia oposição aos tucanos e a todos, vivia a maldizer o PSDB. No governo deixou de reclamar, porque precisava de apoio e votos no Congresso Nacional. Dali em diante, reconheceram os petistas, a aliança era legítima.

Quando grande parte do PMDB rompeu com os petistas, antigos aliados passaram a ser chamados de golpistas. Hoje, como o velho aliado volta à nau, descobre-se que Jucá, Sarney e outros mais... e, claro, todo o atual MDB precisam ser cortejados, em nome da ordem democrática ameaçada pelo presidente Bolsonaro e seus aliados, entre os quais antigos parceiros e colaboradores dos governos petistas.

Saindo do campo esquerdista, que se apresenta como defensor da democracia, e indo em direção à direita, apontada como liberticida, o atual presidente da república e parte de seus assessores apontavam o Centrão como um dos vilões a ser combatido, pois estava sempre a participar de arranjos visando não o bem-comum, mas interesses paroquiais e quase sempre mesquinhos. Bolsonaro e a trupe agiam assim quando se apresentaram como a reserva moral do país. E assim permaneceram até descobrirem que governar é mais do que maldizer o sistema. Resultado, Bolsonaro anda abraçado ao pessoal do “maldito Centrão”, aquele sobre o qual, cantava o general Heleno, se “gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão” (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/se-gritar-pega-centrao-nao-fica-um-meu-irmao-dizia-heleno-ha-3-anos-agora-centrao-ganha-espaco-com-bolsonaro.shtml).

A política do mundo real cobrou um preço a Lula e ao PT e cobra, nos dias que seguem, a Bolsonaro e seu grupo. Abraçar o MDB de Renan Calheiros, de Romero Jucá e de outros do mesmo naipe é o mesmo que abraçar o Centrão. Os dois fazem isso enquanto cantam os versos da cartilha moralista, entre os quais o mais conhecido é “Não roubar”. Falam para convencer os de fora, porque os de dentro sabem que o butim terá de ser repartido em algum momento.

O discurso real é Às favas todos os escrúpulos da consciência, frase com a qual o então ministro Jarbas Passarinho saudou o Ato Institucional 5 (AI-5), o mais duro entre todos os atos institucionais.