Traficante brasileiro terá artigo acadêmico apresentado em congresso em Portugal

21 de julho 2021 - 10h02
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O traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, comparou a situação dos presídios federais do Brasil à crucificação de Jesus Cristo em um artigo que será apresentado no Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra, em Portugal, entre 12 e 14 de outubro deste ano.

Mesmo atrás das grades, Beira-Mar, apontado como o chefe da facção criminosa Comando Vermelho (CV), que atua no tráfico de drogas em favelas do Rio de Janeiro, se formou em teologia em 2019 em um curso de graduação a distância nas Faculdades Batista do Paraná.

UOL teve acesso com exclusividade ao conteúdo do trabalho acadêmico, que menciona a Bíblia para se referir ao encarceramento, condenação e crucificação de Jesus Cristo. O texto também faz referências à Constituição, a um relatório do Ministério Público sobre o sistema prisional e a uma resolução da ONU (Organização das Nações Unidas).

Aprovado na segunda-feira (19) pela organização do congresso, o artigo científico "Deontologia Jurídica da Crucificação de Cristo: paralelismo entre a via crucis de Jesus e o tratamento desumano das prisões federais brasileiras" foi escrito em parceria com a advogada Paloma Gurgel, que vai entrar com pedido na Justiça Federal nos próximos dias para que Beira-Mar possa participar da apresentação online durante o evento.

"Todos os autores de artigo aprovados pelo congresso têm o direito de fazer uma apresentação de forma oral", afirma a advogada.

Beira-Mar está no sistema prisional federal de segurança máxima desde a sua inauguração, há 15 anos, onde cumpre pena de mais de 300 anos por crimes como homicídio, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro —ele inclusive foi condenado, acusado de chefiar uma guerra entre facções criminosas no presídio de Bangu, em 2002.

O traficante, no presídio federal de Campo Grande (MS) desde 2019, citou uma reportagem do UOL sobre depressão nas penitenciárias federais e uso excessivo de medicamentos psiquiátricos no texto em conjunto com Paloma Gurgel, relacionando o tema ao suicídio de Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, encontrado morto com sinais de enforcamento dentro da própria cela na penitenciária federal de Catanduvas (PR), em setembro de 2020.

Da análise fria da lei percebe-se o espírito punitivista que pulsa nela. O isolamento social promovido com fundamento na lei permite que o apenado seja submetido a transtornos psiquiátricos uma vez que o homem é eminentemente ser social
Trecho do artigo escrito em parceria entre Fernandinho Beira-Mar e a advogada Paloma Gurgel

A OEA (Organização dos Estados Americanos) cobrou providências do governo brasileiro após denúncias protocoladas por detentos há mais de dez anos nos presídios federais por "tortura e pena cruel". Segundo a petição, a decisão de mantê-los por longo período nessas penitenciárias é proibida pela Constituição e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

O artigo também relaciona a "tortura" à pena imposta a Jesus Cristo. "Ele foi submetido à mais brutal das formas de tortura existentes em sua época. O regozijo da própria população —responsável pela pena que foi a ele imposta— com o sofrimento daquele que seria responsável pela própria salvação da humanidade deles, demonstra o quanto nós estamos afastados dos planos de Deus", diz um dos trechos do texto.

'Anseio pela barbárie travestida de justiça'

Beira-Mar e Paloma analisam o tratamento oferecido pela sociedade aos presos da Idade Antiga e Idade Média. Contudo, focam o artigo no paralelo entre Jesus Cristo e a situação dos detentos dos presídios federais no Brasil.

"Nem mesmo o homem mais importante a pisar neste mundo escapou do tratamento desumano e degradante a que eram submetidos os presos nos tempos de outrora", compara o texto.

Esse anseio social pela condenação à pena capital da figura de Jesus Cristo exclama o anseio, ainda tão atual, do povo pela barbárie travestida da aplicação do que muitos entendem por justiça
Trecho do artigo

"A bestialidade com as quais se tratam as pessoas recolhidas ao cárcere desde os primórdios dos tempos denotam que o homem infelizmente não vê a figura do apenado como seu semelhante e, portanto, como pessoa detentora de direitos fundamentais mínimos", afirmam os autores.

O texto ainda relaciona o sistema prisional federal no Brasil à religião ao comparar a reabilitação dos detentos a um "milagre" devido à precariedade do encarceramento no país. "É forçoso reconhecer que a própria sociedade amontoa todas essas pessoas em pequenos espaços (...) [e espera] que um milagre divino as recupere de seus pecados".

O artigo se apoia na "fé cristã" para defender a "salvação" dos presos. "Jesus apregoou a crença na fé cristã como a salvação para todos, inclusive os apenados. E foi além ao relembrar que cumpre a todos nós, enquanto irmãos, a zelar e cuidar daqueles que se encontram em situação de aprisionamento", diz o texto.

"Que possamos repensar o tratamento desumano a que temos submetido a população carcerária. Que possamos franquear aos presos a palavra da salvação. E, principalmente, as condições ideais para que eles possam se arrepender de seus pecados a fim de obtê-la. Que possamos finalmente fazer cumprir os ensinamentos divinos, nos tornando um só com Cristo, seguindo, assim, os seus ensinamentos", conclui o artigo.

Com informações de UOL