D. Sebastiões

23 de Novembro 2020 - 07h05
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Rei de Portugal aos 14 anos de idade, D. Sebastião cresceu e foi educado pelo seu tio, cardeal D. Henrique, em meio a um catolicismo cruzado, na corte de seu avô, Dom João III.

D. Sebastião era filho de Joana da Áustria e de João Manuel, príncipe herdeiro de Portugal, que morreu dias antes do nascimento do filho.

O seu nascimento, em 1554, provocou certo rebuliço à época, pois havia o temor de Portugal ficar sem herdeiro. Talvez por isso mesmo foi o mais amado entre os reis portugueses, por ter sido muito desejado desde antes de nascer.

Provavelmente foi ainda mais amado após a sua morte, em 1578, quando combatia os mouros no norte da África, a ponto de parcela considerável da população portuguesa, à época, rechaçar a notícia de sua morte, afirmando que  ninguém chegara a ver o rei ser morto, surgindo daí a crença de que o ele não havia morrido e que regressaria como um salvador de Portugal.

Surgiram vários D. Sebastiões na Europa e, com o tempo, a crença atravessou o oceano, aportando em terras brasileiras.

Estamos em novembro de 2020, a campanha política para conquista de prefeituras do país ainda corre em algumas das principais cidades brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, entre outras) e o sentimento de que ungidos podem nos salvar do caos faz-se presente.

No caso brasileiro, a intervalos regulares de dois anos, há quase três décadas.

Mesmo quando as campanhas políticas se acabam, os nossos D. Sebastiões teimam em armar palanques nos palácios de governo, sejam municipais, estaduais ou federal, esquecendo-se que, findo pleito eleitoral, é hora de mais administração e menos marketing.

É usual entre os políticos brasileiros não perceberem a distância que separa o palanque do gabinete, razão pela qual perdem-se em meio ao imobilismo administrativo e os lances publicitários, gerando desconfiança, quando não enfado.

Alguns dos candidatos a prefeito este ano subiram nos palanques e nas pesquisas acreditando-se empenhados numa cruzada política destinada a acabar com o sofrimento dos pobres a toque de muita falação e exibição.

Desde o início da campanha, adotam retórica messiânica, apontando-se como os bonzinhos prontos a salvar a população das garras daqueles que só se aproveitam dos cargos, até perceberem, como diria Weber, que há distância considerável entre as éticas que permeiam a política. Aproximá-las é tarefa vital para que o líder não caia na demagogia.

O discurso messiânico é perigoso porque marginaliza a política, a sociedade, as questões econômicas, a razão, etc fundindo política e religião e propondo a salvação a qualquer custo, como foi possível perceber na proposta de Guilherme Boulos para organizar as contas da previdência paulistana (https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/11/20/proposta-de-boulos-para-previdencia-arma-adversario.ghtml) ou de Crivella, às voltas com fanáticos religiosos.

Boulos, Crivela e mesmo Manuela não são os primeiros e nem serão os últimos políticos brasileiros a usar a tática. Ela está aí há tempos e já foi testada nos laboratórios do populismo tupiniquim, acalentada no assistencialismo rasteiro e apoiada pelo tradicionalismo político.

É típica de nossos políticos provincianos e, como diria Paulo Francis, jecas.

Num candidato de mais estofo intelectual, a retórica sebástica só caberia como ironia. Em Boulos, Crivela e Manuela é essência. Sem ela, os três não existiriam politicamente.

Não é novidadeira no Brasil, como disse, a apropriação do discurso religioso pelo debate político.

Até os anos 1970, anti-comunistas acusavam comunistas de representarem o mal, e estes diziam ser a burguesia e os latifundiários as melhores representações de vilania.

Nos Rios Grandes do Norte e do Sul, na segunda e na primeira metade do século XX, a divisão política atingia famílias. No do Norte, então, os anos 1960-70 dividiram o estado de norte a sul, de leste a oeste por cores. O mal vestia verde para os dinartistas e vermelho para os aluizistas.

A retórica política sebástica, além de pretensiosa, é absurdamente cínica, pois invoca o sagrado para defender interesses comuns e materiais.

O povo, ora o povo é apenas joguete do que não pode ser confessado em público.