Paulo Freire não é salvação – e nem danação

02 de Fevereiro 2020 - 12h33
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Confesso que li pouco sobre Paulo Freire, o pensador da educação mais citado e pouco lido.

Dos livros que ele escreveu conheço Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Autonomia, Pedagogia da Esperança e Política e Educação.

Dos livros escritos sobre ele ou sobre sua obra li apenas O educador: um perfil de Paulo Freire (Sérgio Haddad) e Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica (Walter Kohan).

Também li muita coisa escrita sobre ele – contra e a favor – na internet.

É pouco, muito pouco mesmo, mas o suficiente para não tratá-lo como divindade ou como demônio e o necessário para não tomá-lo como o Santo Graal da educação brasileira.

Certamente li bem mais do críticos intransigentes do intelectual pernambucano e bem menos do que estudiosos verdadeiros – verdadeiros e não ocasionais e mitificadores e mistificadores.

O problema da educação, para Paulo Freire, é político. Para ele, tomado por uma visão marxista da história, a educação não deve servir para ascender socialmente, pois isto não serve à revolução marxista. Não são poucas as passagens em suas obras nas quais ele expõe isso. Obter riqueza é algo nocivo e somente favorece à classe dos opressores, pois o desfavorecido social que almeje ascensão irá pertencer ao grupo que deve ser combatido.

Pedagogia do Oprimido não aponta muitos assuntos que ocuparam a cabeça dos reformistas da educação durante o século XX: provas, padrões de ensino, currículo escolar, papel dos pais na educação, como organizar as escolas, que matérias devem ser estudadas em cada série, o modo mais efetivo de educar crianças pobres em todos os níveis. Constitui-se num tratado político utópico que conclama a todos a lutar pelo fim da hegemonia do capitalismo e, na sequência, criar uma sociedade igualitária.

Não por nada, apesar de a esmagadora maioria dos especialistas em Freire dizerem – não sei se com ou sem razão – que a educação brasileira não é norteada pelos ideais e ideias dele, elas estão presentes em vários projetos políticos pedagógicos de não poucas instituições escolares brasileiras, notadamente as públicas.

Para Paulo Freire, os opressores pretendem “transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime”, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os domine." Por isso, ele não parece muito preocupado em dialogar com os mais tradicionais pensadores e educadores do Ocidente, todos ou a maioria imersos no mundo que ele pretende combater e mesmo destruir. Rousseau, Piaget, Dewey, Montessori e outros passam ao largo em sua obra. A preocupação dele é com revolucionários (?!) políticos como Marx, Lênin, Guevara, Fidel Castro, e alguns intelectuais orgânicos do movimento socialista, a saber, Sartre, Debray, Marcuse, Althusser, entre outros. E assim é porque a inquietação dele não está na sala de aula propriamente dita, mas na contradição opressores e oprimidos presente na sociedade ocidental, mais particularmente no mundo capitalista, só havendo um meio de superar este conflito, a revolução. Para isso, caberá aos oprimidos desenvolverem uma pedagogia que os levem à sociedade igualitária e, portanto, livre.

O trecho mais citado nas nossas escolas é este: “Na medida em que esta visão ‘bancária’ anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação. O seu ‘humanitarismo’, e não humanismo está em preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a manutenção de sua falsa generosidade(...). Por isto mesmo é que reagem, até instintivamente, contra qualquer tentativa de uma educação estimulante do pensar autêntico, que não se deixa emaranhar pelas vozes parciais da realidade, buscando sempre os nexos que prendem um ponto a outro, ou um problema a outro.”

Pincei algumas passagens de Pedagogia do Oprimido porque elas expõem com nitidez o objetivo da obra. No entanto, as ideias não estão somente lá, estão em outras obras do arrojado pedagogo e educador brasileiro, pois em toda ela o seu intento é maldizer uma educação que serve para respaldar a atuação política e social de uma classe que, supostamente, subjuga outra.

Em toda a obra de Paulo Freire uma muleta se faz presente: pensar autêntico.

Mas o que seria pensar autêntico?

Para fazer emergir o pensamento autêntico, Paulo Freire traz à cena a famigerada visão bancária, que representa uma visão antidialógica, burguesa e capitalista. Contra ela, Freire assesta as baterias para demoli-la e substituí-la pelo pensamento autêntico, a saber, aquele que promete atacar as bases da sociedade de opressores e oprimidos.

Manter a coisa como está é garantir que as elites dominadoras continuem manipulando e “inoculando nos indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal”, e tal “manipulação se faz ora diretamente por estas elites, ora indiretamente, através dos líderes populistas. Estes líderes, como salienta Weffort, medeiam as relações entre as elites oligárquicas e as massas populares.”

Para prática bancária, o essencial é apenas atenuar esta situação, devendo-se manter “as consciências imersas nela”, enquanto para “a educação problematizadora, enquanto um fazer humanista e libertador, o importante está em que os homens submetidos à dominação lutem por sua emancipação.”

Emancipar-se do sistema capitalista, do desejo de fazer parte do mercado de trabalho para desfrutar de benesses advindas do aumento de renda é algo a ser repudiado e combatido. O jovem que obteve de fato sua emancipação é agente ativo da revolução socialista e não deseja nada além de contribuir para esta: “O ‘homem novo’, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer da superação da contradição, com a transformação da velha situação concreta opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação. Para eles, o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão do homem novo é uma visão individualista. A sua aderência ao opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classe oprimida. (...) querem a reforma agrária, não para libertar-se, mas para passar a ter terra e, com esta, tornar-se proprietários ou, mais precisamente, patrões de novos empregados. Raros são os camponeses que, ao serem ‘promovidos’ a capatazes, não se tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrão mesmo.” Logo, o indivíduo realmente livre e consciente, para Freire, é o que serve ao coletivo e que anula sua individualidade diante dos postulados coletivistas, e porque não dizer socialistas.

E arremata o pensador da educação que pensa a educação como espaço para fomentar a revolução: “A manipulação, na teoria da ação antidialógica, tal como a conquista a que serve, tem de anestesiar as massas populares para que não pensem”, pois se elas pensarem “associam à sua emersão, à sua presença no processo histórico, um pensar crítico sobre este mesmo processo, sobre sua realidade, então sua ameaça se concretiza na revolução”. A este pensar certo Freire chama “de ‘consciência revolucionária’ ou de ‘consciência de classe’, (...) indispensável à revolução, que não se faz sem ele.”

O “pensar certo”, repito, é somente aquele que serve a causa coletivista, não havendo liberdade para o indivíduo se retirar do processo revolucionário, dado que ele (indivíduo) só existe, como afirmamos acima, se servir ao coletivo. Aquele que deseja fazê-lo é porque ainda carrega consigo o opressor, convertendo-se em inimigo a ser disciplinado.

Valorizar a convivência entre os contrários não é exatamente o que mais move Paulo Freire, afinal o essencial é fazer a revolução, como é possível destacar nesta passagem: “Na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor. Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor. Enquanto a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à violência daqueles se encontra infundida do anseio de busca do direito de ser. Os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão. Por isto é que, somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam.”

Paulo Freire justifica a violência a ser utilizada pelos oprimidos e a legitima como expressão de amor, como se fosse algo até natural numa ideia de que este grupo o faz para defender e assegurar sua existência. Neste sentido, o educador pernambucano iguala-se a outro luminar revolucionário de esquerda brasileira, o baiano Carlos Marighela, que, no seu Minimanual do Guerrilheiro Urbano, justifica atos de violência e ódio dirigidos a certas classes e instituições.

Ambos apregoam uma violência e um ódio libertadores. Para Freire, no entanto, a violência é fundadora do amor e com ela traz a verdadeira liberdade.

Lembro de uma sentença de Delfim Neto, ex-ministro dos governos Costa e Silva, Médici e Figueiredo, proferida em 1989, na esteira da queda do Muro de Berlim: “Vejo muita gente dizendo que não precisamos mais estudar o marxismo. Eu discordo e digo isso onde vou. Para mim, agora que o comunismo está ruindo é que devemos estudá-lo, para saber exatamente onde estão os erros.”

Quem critica Paulo Freire diz que nada existe nele que possa nos levar a chamá-lo de educador e pedagogo. Eu discordo da sentença. Ele não é da escola de pensamento que eu siga e propõe muitos caminhos pelos quais eu jamais iria, mas não deixo de reconhecer arrojo no que ele escreve.

Venerá-lo ou amaldiçoá-lo, como fazem críticos e seguidores cegos, não resolve nada.

É preciso lê-lo, até para saber por que não devemos segui-lo.