
A ideia de que estamos sempre intoxicados e precisamos com urgência de um processo de desintoxicação — popularmente conhecido como detox — para restaurar nossa saúde ganhou força no pós-pandemia e se transformou em um negócio lucrativo no Brasil. As promessas de uma "limpeza" corporal variam desde cápsulas mágicas e soros injetados diretamente na veia até uma controversa aplicação de café pelo ânus.
Apesar da propaganda sedutora, a ciência não apoia essas práticas. O pior é que, promovidos por médicos nas redes sociais, esses tratamentos falsos podem representar sérios riscos. Esperançosas, muitas pessoas miram na saúde, mas acertam na doença.
No caso da empresária Tânia Marcelino, de 58 anos, demorou cerca de um ano até ela se dar conta de que o dinheiro que ela investia não estava sendo direcionado à melhora da saúde — muito pelo contrário.
"Uma amiga indicou essa médica aqui na minha cidade, Campinas [SP], e ela [profissional] foi sempre muito atenciosa, explicava tudo. Como eu não entendo, e minha amiga tinha elogiado muito, achei interessante. Eu queria ter mais energia, estava me sentindo muito cansada. Fechamos um pacote de seis meses, por R$ 2.000, que incluía consultas, orientações sobre alimentação e soroterapia para repor vitaminas e minerais", explica.
Tânia sempre esteve bem de saúde, fazia exercícios físicos com regularidade e teve exames de sangue com níveis normais ao longo da vida. O cansaço era a única queixa. Passados os primeiros seis meses, a médica vendeu a ela um novo pacote. Foi quando percebeu que algo estava estranho.
"Eu continuava cansada. Comecei a ter espinhas do nada — nunca tive — e meu cabelo caía muito. Reclamei com a médica, mas ela disse que era estresse e tentou me vender mais tratamentos. Não aceitei. Fui a uma dermatologista, que disse que era para eu não tomar mais esses soros. Depois de uns meses, meu corpo voltou ao normal", lembra.
Soros com as mais diversas composições são oferecidos por médicos em todos os cantos do Brasil.
O site de uma clínica em Vitória (ES), por exemplo, vende o chamado "soro detox", que seria uma forma de "desintoxicar e realizar esta limpeza do organismo". Promete ainda eliminar metais pesados e substâncias que causam, supostamente, danos à saúde. Ao final, o cliente terá, garante o vendedor, "a sensação de leveza, melhora da pele e do metabolismo". O R7 entrou em contato com o estabelecimento para saber o preço: R$ 400 por aplicação.
O presidente da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia), Paulo Miranda, ressalta que são raros os casos de intoxicação por metais pesados.
"Conhecemos os estados de intoxicações por via ambiental, por metais pesados, entre outros, que são vinculados necessariamente a ambientes propícios a essa exposição. Parte da população, brasileira e mundial, não está mais exposta a este tipo de ambiente. Então, a intoxicação por estes metais é uma situação extremamente rara hoje em dia e resguardada a situações específicas", adverte.
Na internet, são inúmeros os relatos de pessoas que tiveram experiências negativas com a soroterapia.
"Vi uma publicação no Instagram sobre os benefícios da suplementação de vitaminas e, após contato com a clínica, fui informado de que seria seguro e sem efeitos colaterais. Fui à clínica, fiz soroterapia e reposições de vitaminas e minerais, mas, no dia seguinte, me senti mal-estar e precisei ir à emergência. O médico diagnosticou taquicardia, intoxicação e pressão alta como efeitos colaterais das suplementações", contou um morador de Fortaleza (CE) em um site de reclamações.
'Organismo funcionando em sua melhor versão'
Sentada em uma cadeira e com um acesso venoso no braço, uma médica e dona de uma clínica na zona sul de São Paulo faz a propaganda da soroterapia: "Para fazer soroterapia eu preciso ter deficiência de nutrientes? Não. E eu vou te explicar o porquê", diz a profissional no vídeo, publicado no Instagram.
"A soroterapia é uma das formas de repor nutrientes e substâncias para o nosso organismo, assim como a via oral. Posso apenas preferir repor todas as vitaminas, minerais e aminoácidos de forma mais rápida e eficiente através da soroterapia ou de uma injeção ao invés de tomar várias cápsulas todos os dias. Não devo repor apenas quando estiver deficiente. Isso, claro, se eu quiser ter uma saúde otimizada e o organismo funcionando em sua melhor versão, tanto celular quanto metabólica e hormonal", completa.
A médica, que não tem título de especialização registrado no CFM (Conselho Federal de Medicina), oferece tratamentos, todos feitos por ela, para condições que vão desde obesidade até transtornos mentais.
O R7 contatou a clínica pelo WhatsApp. Um robô informa que o primeiro passo é agendar uma consulta que custa R$ 300 — não há cobertura por plano de saúde. Diferentemente de médicos tradicionais, que prescrevem medicamentos e terapias que são feitas onde o paciente desejar, nesse tipo de medicina alternativa, tudo é feito lá mesmo, com um "investimento" inicial de R$ 2.500.
Alguém que se disponha a fechar um pacote desse gastaria dinheiro em um procedimento que não tem qualquer respaldo científico. Muito pelo contrário, há alertas sobre a soroterapia.
Um artigo publicado no periódico científico Drug and Therapeutics Bulletin, no ano passado, reiterou que "há uma falta de evidências de alta qualidade para sugerir que infusões de vitaminas em altas doses são necessárias ou oferecem qualquer benefício à saúde na ausência de uma deficiência de vitamina específica ou condição médica". Alerta ainda que "pode haver danos ao tomar altas quantidades (não fisiológicas) de algumas vitaminas e minerais".
A mesma profissional aparece em outro vídeo injetando no soro de um cliente um composto chamado azul de metileno, cujos benefícios terapêuticos seriam, segundo ela, a desintoxicação do fígado e melhora do desempenho cerebral e cognitivo.
De acordo com a FDA (agência reguladora de medicamentos dos EUA), o azul de metileno tem indicações específicas, como o tratamento de metahemoglobinemia, uma condição rara em que o ferro na hemoglobina é oxidado, prejudicando o transporte de oxigênio, por exemplo. Contudo, não há evidências científicas que comprovem os benefícios prometidos pela médica paulista.
Quem precisa de soro?
Paulo Miranda, da SBEM, acrescenta que "soros são aplicados em situações muito especiais para pacientes que demandam esse tipo de tratamento em situações críticas". São casos de "desidratação, desequilíbrios hidroeletrolíticos, desequilíbrios ácido-base, reposições de nutrientes que precisam ser feitas de maneira mais aguda por sintomatologia muito grave ou incapacidade de absorção".
"Uma pessoa saudável, que tenha um hábito de vida saudável, que tenha uma alimentação saudável, não necessitará de infusão de soros, micronutrientes, sais minerais ou vitaminas por via endovenosa em praticamente nenhuma situação", enfatiza.
Além do mais, pondera o endocrinologista, a maioria desses nutrientes infundidos é eliminada pelo organismo nas horas seguintes. Quando isso não ocorre, existe o risco de intoxicação. Ou seja, o indivíduo paga para se desintoxicar, mas o efeito é justamente o oposto.
Tomar uma vitamina ou mineral pela via oral permite que o organismo "module a absorção conforme a necessidade, diminuindo — mas não eliminando — o risco de intoxicações", explica o médico.
O conceito de injetar nutrientes na corrente sanguínea tem suas raízes na década de 1970, quando o médico americano John Myers desenvolveu o coquetel de Myers. Esta fórmula combina altas doses de vitaminas e minerais, como vitaminas do complexo B, vitamina C, magnésio e cálcio, misturados com água estéril.
Apesar de popular, o coquetel de Myers tem ingredientes capazes de piorar a saúde de pessoas com determinadas condições. Por exemplo: a vitamina B6 intravenosa pode levar a respostas mais fracas a medicamentos tomados para estimular a produção de células sanguíneas (por exemplo, eritropoetina, alfaepoetina e alfadarbepoetina), frequentemente usados em pessoas com doença renal crônica ou câncer, salienta o Manual MSD de Diagnóstico e Tratamento.
Já o magnésio, se administrado rapidamente, pode causar queda da pressão arterial, além de interagir com medicamentos anti-hipertensivos. Pacientes em tratamento com ceftriaxona (um antibiótico) podem ter danos nos rins, pulmões ou na vesícula se receberem uma infusão com cálcio, de acordo com o guia médico.
Vendendo a ideia de que estamos intoxicados
O fenômeno do detox teve alguns renascimentos ao longo das últimas décadas e acabou impulsionado pelas redes sociais mais recentemente, observa a nutricionista Lindsey Wohlford, do MD Anderson Cancer Center, ligado à Universidade do Texas, nos EUA, um dos mais prestigiados centros de pesquisa de câncer do mundo.
"Dietas desintoxicantes, limpezas e outros regimes voltados para a remoção de toxinas do corpo têm entrado e saído de moda por décadas. A crescente preocupação com a saúde e o bem-estar pós-pandemia, combinada com o acesso ampliado à informação sobre bem-estar digital e às redes sociais, contribuiu para um renovado interesse nessa prática", afirma a especialista.
A nova onda de tratamentos detox tem estratégias de marketing quase padronizadas entre quem os vende. Nas últimas semanas, o R7 visitou centenas de perfis de médicos e estabelecimentos de saúde nas redes sociais. O que se viu foram profissionais jovens — a grande maioria sem especialização registrada no CFM —, comunicativos e seguidos por milhares de pessoas.
Somam-se a isso consultórios ou clínicas localizados em bairros nobres, com decoração sofisticada e acolhedora, ambientes verdadeiramente "instagramáveis", onde os próprios clientes ajudam a divulgar o negócio com suas publicações.
O marketing é, de fato, o propulsor do mercado da desintoxicação. Em seu livro Ciência Picareta, o médico, pesquisador e escritor britânico Ben Goldacre analisa o que pode ter sido um dos primeiros métodos detox vendidos em massa, no começo dos anos 2000.
"Aqua Detox é um banho de desintoxicação para os pés, entre muitos produtos similares. [...] A hipótese dessas empresas é muito clara: seu corpo está cheio de 'toxinas', sejam elas quais forem; seus pés estão repletos de 'poros' especiais (descobertos, nada menos, por antigos cientistas chineses); se você colocar os pés na bacia, as toxinas serão extraídas, e a água ficará marrom. O marrom da água deve-se às toxinas? Ou é apenas um teatro?"
O autor identificou que a água fica marrom com ou sem os pés, porque o que a deixa nessa coloração é o processo de eletrólise — os eletrodos de ferro do equipamento enferrujam.
Goldacre também submeteu a testes a água do banho de pés que fez em si mesmo. Escolheu duas substâncias que o nosso corpo elimina naturalmente pela urina: creatinina e ureia. Mas nenhuma delas estava presente na água do alegado tratamento. "Teatro é o tema comum em todos os produtos de desintoxicação", concluiu.
"Você se imaginar repleto de impurezas, que alguma terapia vai retirá-las do seu corpo e isso vai fazer o seu organismo funcionar melhor... é uma alegação muito forte, que faz com que as pessoas se mobilizem para buscar terapias", diz Paulo Miranda, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.